Henrique e a revelação do olhar guaicuru
Diz a lenda que Henrique Spengler quando era criança saiu para passear no centro de Coxim e quando voltou relatou para sua família que viu uma festa linda com uma pessoa deitada num caixão e muitas flores. Quando adolescente interpretou um índio guerreiro na peça teatral “Pecado, encarnação e vida”. Ao olhar os presentes insensíveis à narrativa, incorporou tão impetuosamente o índio que amedrontou o público e os artistas da contracena. Era assim quando penetrava naqueles seres de luzes de complexidade simbólica projetada no fundo branco e ali se banhava dos saberes das vidas passadas. Viu ali o tempo em que os nativos da América ainda viviam romântica e livremente as águas por dentro das florestas queimando de sinceridade verde até onde a vista alcança. Somente depois vieram os homens máquina apontando suas bocas de fogo e afiados metais, mercantilizando cada planta, cada bicho e suas gentes para escravizar ou matar. Foi pelo século XVII que ibéricos atacaram e foram atacados pelos guaicuru, que tomaram seus metais e seus cavalos tornando-se, eles mesmos, guerreiros temidos, perpetuados na aquarela de Debret centenas de anos depois. A epifania da cultura dos povos indígenas brotava como fonte abundante a cada novo estudo, cada nova vivência estética, cada atividade criadora da sua performance de artista, amigo e cidadão. Foi provocando espontaneamente um convencimento objetivo poético da sociedade regional sobre a raiz identitária guaicuru da nossa cultura. Na terra do boi, do grão e da bala ele vence uma contundente batalha pela difusão da força imagética da iconografia kadwéu e da valorização geral das culturas dos povos indígenas. Seu olhar sempre foi além da imediaticidade, da aparência, buscando sentidos e conhecimentos profundos, indo as raízes estéticas e éticas da história como centelha viva para incendiar o mundo. Assim, as infinitas gerações de mortos foram lhe trazendo o sopro da inspiração criadora de novas verdades. Teus olhos revelaram um imenso casarão na Avenida Calógeras, no centro de Campo Grande, onde muitas almas de teatro, música e todas as artes viveram a vida real, dores, amores, sonhos utópicos e suas raízes nativistas.
Do toque macio das palavras e o riso gostoso do olhar, um adentramento sutil de intenções produzindo novos gestos e estes um novo gozo contraditório de ser no mundo. Importantes pensadores ambientalistas dos cinco continentes encontraram-se no Rio de Janeiro em 1992. As denúncias poéticas reveladas por Henrique sobre as raízes de nossa ancestralidade latino-americana ecoaram para além do obvio nos sentidos humanos de todo o mundo. Tratando o incontestável da vida natividade como condição da sobrevivência humana descobriu injustiças, criou sentidos democráticos tirou o descanso dos apáticos e com eles se entregou distraidamente ao gesto de ser junto, ser coletivo, criação de todos voltada para cada um. Nas revelações sobre a existência de intenso trânsito entre povos indígenas os Peabiru, extrapolou as poéticas e as histórias criando veios para o turismo cultural ecológico em Coxim. Até os políticos em instantes de distração entendiam seus sinais Uma nova religare agora não mais com preceitos mitológicos reproduzindo a dominação, mas sobre a necessidade histórica de que as culturas e a vida indígena continuem existindo fortes, diversas e protegidas. Uma atitude meramente humana, tão próxima e tão distante, ecológica, coletiva, a fruir a beleza e a intensidade de outros mundos que já existiam antes de nós e ao mesmo tempo serem nosso futuro. Humano como o contrário de coisa, humano como liberdade em oposição a exploração, opressão e violência. Montado nos olhos das palavras foi iluminando caminhos como presságios, como sons produtores de novas materialidades, muito além da lenda a medida em que, na contramão dos interesses reais da mercantilização do mundo, revelou a complexa simplicidadevisual do humano radicalmente escondida nas culturas indígenas, no olhar poético profético dos antepassados guaicuru.