Unidade

Guaicuru

Viva

Caroline Garcia e Paulo Duarte Paes

Quase duas décadas após a trágica morte de Henrique Spengler, artistas, produtores culturais, professores, organizam a memória para reviver o Movimento Guaicuru no mundo digital. O site disponibiliza gratuitamente ao público uma exposição permanente de obras de variados artistas que participaram deste momento histórico da arte sul-mato-grossense. Guiando os sentidos e o entendimento sobre as obras, textos e entrevistas contextualizam a vivência estética e a compreensão sobre os fundamentos estéticos e a história, cujas obras são apenas a parte visível de um objeto social muito maior.

A arte na América latina até o século XIX se caracterizava, principalmente, pela reprodução dos movimentos europeus. O modernismo latino-americano antropofagicamente rompe com este colonialismo criando conceitos e formas próprias ancoradas nas raízes culturais indígenas e populares. Se a arte sul-mato-grossense fazia alusões ocasionais às iconografias visuais e conceituais das culturas indígenas, depois da Movimento Guaicuru houve uma ressignificação de valores e a intensificação da busca destas referências. A racionalidade poética de Henrique converteu-se em realidade, uma unidade dialética entre a as artes visuais, as demandas culturais do Estado recém-criado e a cultura indígena, em especial a do povo guaicuru.

As icônicas pesquisas de Guido Boggiani que resultaram na publicação do livro I Caduvei [Mbya o Guaicuru, Viaggio d´un artista nell´America Meridionale, editado em 1895, referência para etnógrafos como Alfred Metraux, Claude Lévi-Strauss e Darcy Ribeiro foram fundamentos relevantes para o Movimento Guaicuru. Tal pioneirismo trouxe à tona o conhecimento sobre esse povo, em seu território de origem, com contornos artísticos e o desejo de revelar seus traços identitários ainda presentes na cultura de Mato Grosso do Sul.

A riqueza da iconografia dos kadwéu, os últimos remanescentes dos guaicuru, encantou Henrique que a chamava de abstracionismo nativista, tornando-se a referência estética central de sua obra. Ele não se propunha a reproduzir as tendências universais da arte de seu tempo, mas trazer à vida contemporânea as cores, composições, abstrações geométricas e tradições visuais kadwéu. Criava sua obra com elementos formais que não se desviassem dos originais grafismos nativos, mesmo utilizando suportes e materiais contemporâneos.

Artistas, como Adilson Schiffer, Luiz Xavier e Silvio Rocha, continuaram indefinidamente produzindo suas obras inspirados na iconografia kadwéu. Outros muitos sofreram alguma influência temporariamente diversificando as referências e temáticas, tais como: Paulo Rigotti, Ilca Galvão, Andrea Luz, Anelise Godoy, Blanche Torres, Miska Thomé, Dagoberto Pedroso, Nelly Guimarães, Vitoria Braun, dentre outros. O artista Jonir Figueiredo esteve presente na Unidade Guaicuru desde sua criação e foi um importante continuador do Movimento, além de posteriormente coordenar a Unidade Guaicuru em Campo Grande enquanto Henrique estava trabalhando em Coxim. Foram organizados e houve significativa participação em inúmeros Salões de Arte, encontros, congressos, publicações e outras atividades com objetivo de compreender a difundir a cultura guaicuru como sendo a origem primeira da identidade cultural do MS. O movimento foi muito além das artes visuais atingindo organizações governamentais e não governamentais, congressos, chegando inclusive a se propor o epônimo de “Guaicuru” a todos os que nascem no estado. Além disso, a participação na vida política, social e ambiental do Estado, era uma constante, produzindo Manifestos, fazendo a análise crítica das políticas públicas para a cultura e participando de importantes movimentos populares nacionais como Diretas Já, Constituinte, impeachment do presidente Collor, e até da Rio 92, conferência internacional sobre o meio ambiente em que Henrique Spengler teve fala, representando o MS. A intersecção entre a realidade econômica, política, a arte e as formas estéticas indígenas da região abre um espaço cultural para a criação do novo, de uma cultura humana que se universaliza. Uma nova estética como unidade viva entre história, política e arte, uma Unidade Guaicuru.